Vc sabe qual é o verdadeiro dilema da faxina? É que não tem uma fronteira clara entre limpo e sujo, contaminado e desinfetado. Vou dar um exemplo: uma vez vi uma pessoa limpar o chão da casa e passar o mesmo pano, umedecido de desinfetante, no assento da cadeira. O assento ficou limpo ou ficou sujo?
Vc vai me dizer: depende, Natânia. Se o pano com desinfetante limpou o chão da sala ou do banheiro, se limpou poeira ou vomito, se o assento era de plástico ou acolchoado. Aí é que está! Muitas variáveis atravessam nossas limpezas, mas o que governa é sempre um “bom senso” sobre como limpar. O processo é intuitivo e totalmente aleatório! Se tentar estabelecer critérios racionais você endoidece (eu!).
Se eu tomo banho depois do mercado, tem coronavírus no meu box? Por via das dúvidas eu jogo cloro depois. Já é a limpeza da limpeza. Mas não me convence... Imagino aquela mamoninha virótica, aquela pitayazinha do demônio escorrendo pela parede numa gota que não foi atingida pelo cloro que eu espirrei por ali com displicência.
O melhor sabonete para o lavatório é líquido ou em barra? É meio nojento, quase pornográfico, todo mundo esfregar a mão na mesma barra de sabote. Mas, pelo menos em teoria, a substância limpante deveria ser, por definição, livre de sujeiras. Imagino os micróbios estourando suas membranas na alcalinidade redentora do sabonete como aquelas balinhas que vinham num envelope e estouravam na boca, lembra? Como fogos de criança em festa junina.
Mas vamos combinar que se tiver uma lasquinha de bosta no sabonete em barra, esquecemos as bactérias e coisas microscópicas pq o cocô é a própria entidade contaminante. O sabonete líquido -não se engane- tem o mesmo problema, talvez pior. Pq vc tem que tocar no dispensador de plástico que não tem o poder de estourar micróbio. (E já temos a informação perturbadora de que o vírus no plástico ainda fica ativo por dias).
Dá pra lavar a roupa do bebê junto com a cueca do marido? Não? Pano de prato com pano de chão? Também não? Toalhas de banho com tapetes? Não? Mas não serão todos limpos? Há graus de sujeira permitidos para cada ambiente e superfície, é claro. Então estes panos todos não podem ser estendidos na mesma corda e com os mesmos pregadores, né?
A CASA É SOBERANA
O realismo doméstico é agora a vida comum das pessoas.
Meus pais estão velhos numa casa que não devo visitar. Aqui comigo, a minha nova família nuclear: Lucas e Bento, objetos do meu amor total, que sempre teve um raio muito curto de abrangência para os lados, mas que é enorme pra baixo, pra dentro.
A casa se tornou assustadoramente soberana esses dias. Por sorte eu tenho um pacto antigo com ela. Desde sempre só quis um jardim, um "lá fora" dentro, pra olhar o céu e as plantas sem nenhum risco. Nós nos entendemos, eu e a casa. Ela tem um ciclo quase preciso: vai se desarrumando e depois vai se arrumando.
Nós sentimos a sua respiração pra saber onde e quando investimos nossas faxinas. As paredes frias onde moram lacraias. O forro de madeira com duas grandes pilastras bem no meio da sala, torcidas como pirulitos. Arandelas de gesso em forma de tulipas nos quartos. Desconfio desse clima de fim do mundo.
Porque o fim do mundo é uma coisa que não se confunde com o clima de fim do mundo.
Natânia Lopes. 18 04 2020
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