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  • Foto do escritorPaçoca Psicodélica

FOFOCA, MULHERES E PERIFERIA - Daiane Novaes

Lá no primeiro episódio (rs) do "Mulheres do meu andar" surgiu um comentário, que eu já imaginava que surgiria, relacionado à questão da "fofoca". E como não surgiria? Eu, uma mulher, debruçada sobre a minha janela, contando, como narradora onisciente, de forma totalmente subjetiva, do cotidiano de outras mulheres com quem partilho a experiência de COHABitar a vida periférica... Que absurdo! rs. Mas deixa eu te contar uma coisa sobre "fofoca", só pra vc, não conta pra ninguém tá? Tudo que te ensinaram sobre as mulheres é mentira. A nossa comunicação horizontal e alianças garantiu e garante a nossa sobrevivência até hoje. E não o contrário. E eu quero fofocar sobre isso. Lembro-me quando eu estudava História lá na USP (há alguns bons anos), de um estudo muito bacana que peguei pra ler por curiosidade na cátedra, que falava sobre a experiência de co-maternidade tribal. Não me recordo o recorte regional depois de tanto tempo, mas uma coisa sobre o conceito eu guardei muito bem: todas as crianças eram filhas da aldeia, da tribo. A responsabilidade pelo cuidado delas era igualmente dividida entre todos os adultos. E para o sucesso disso, existia uma coisa fundamental acontecendo: a comunicação horizontal entre eles. O 'problema' de uma criança ou de um jovem de um determinado grupo, não era necessariamente o problema de quem fecundou, gestou e pariu. Nem dele próprio. Era da tribo. Um nascimento, apesar do protagonismo da puérpera, era dividido e auxiliado entre todas as mulheres próximas. O cuidado com o humano chegante também. Sabe pq? Apesar dos homens verem no nascimento a perpetuação dos seus genes e descendência, as mulheres veem nas mães ELAS mesmas, são sensíveis às dores da outra mulher. É muito comum nas comunidades periféricas, onde creche é sorte e babá é luxo, que mulheres próximas cuidem dos filhos umas das outras (numa emergência, num compromisso, num trabalho, numa 'olhadinha para eu ir ali'). Que ajudem também com os entes senis. Que auxiliem nos cuidados com os doentes. Que cuidem dos pets e das plantas quando a outra precisa se ausentar. Esse dito do "vá cuidar de sua vida", burguês e neoliberal, não faz o menor sentido pra interdependência periférica. Ontem mesmo, lá na COHAB, vi isso na prática: uma moradora do andar de cima chegou de viagem (havia ido cuidar da mãe adoecida "no norte") e, ao chegar, descobriu que o marido, alcoólatra e desempregado, havia vendido tudo (que já era pouco) que havia na casa. E dali começou uma corrente para dar o mínimo de suporte para ela sobreviver. Uma que levou janta feita. A outra que emprestou o botijão de gás. A outra que deixou com ela o fogão da filha recém separada. A outra que arrumou um colchão usado. Pq o desespero dela não é o desespero apenas dela. É a dor de cada uma que não estava no lugar dela, naquele momento, por mero acaso da vida. Um pouco antes, uma outra periférica, a D. Josefa, havia me parado para se explicar pq ainda não havia pago um remédio de 9,00 reais que eu havia vendido a ela, precisada, para 'acertar depois'. Ela havia acabado de conseguir tirar o auxilio emergencial e foi pagar a promessa que fez pra deus: comprar uma dúzia de bananas e uma dúzia de laranjas para doar pra uma vizinha que tbm tava na mesma situação de espera do auxilio, mas que não havia tido a mesma sorte de conseguir receber, para que tivesse o que comer. "_ Ô D. Zefa, paga deus primeiro, fica tranquila. Qdo der a sra me acerta e levo pra farmácia." Deus não espera, né. Já as minas, conhecem a luta uma da outra. Quando vejo pessoas dizendo sobre as mulheres no portão "cuidando da vida dos outros", entendo a mesma frase, porém no sentido literal. O 'cuidando'. De cuidado. A origem etimológica da palavra fofoca (do banto) significa "resolver". Olha-que-lindo! "Resolver". Quando a Dona Maria, evangélica, me chamou para dizer que havia pego o seu dinheiro da rescisão trabalhista e dividido entre os filhos, pq não sabe quando iria encontrar um emprego de novo e não queria que eles passassem necessidade, porém o mais novo (de 18) havia pego os 200$ e comprado um narguile (e não roupa, comida ou sapato, como ela havia pedido), ela tava mais interessada em entender o que é esse negócio de narguile e se é verdade que ele mata, do que xingar e maldizer o garoto (o que ela fez sim, também, pelo óbvio da situação). "Moleque do cão! Irresponsável" E o que há de "resolução" nisso, para além da maledicência? Antes de mais nada, compartilhar um conflito com alguém que está fora dele. Falar sobre. Elaborar. Pedir conselho. Pq todos sabemos que falar sobre os nossos problemas é terapêutico, promove o alívio. Assim como sabemos que a mulher periférica sobrevive às condições mais adversas e inviáveis de sobrevivência material. Mas as suas estratégias de sobrevivência psíquica são todas motivos de escárnio: quando partilha, é fofoqueira. Qdo se entrega pra igreja, é tia crentelha. Qdo apela ao misticismo, ao universo, ao sobrenatural, é a da 'macumba', da simpatia. Qdo externaliza é a doida. Quando guarda e somatiza, é a histérica. "Ah, mas Dai, e quando o assunto não é a vida dela, mas a das outras"? Primeiro que não existe vida 'de outras' totalmente, na periferia. Estamos numa teia de interdependência. Uma mãe que perde um filho assassinado, são todas as mães enlutadas. Uma mãe que tem o filho preso, são todas as mães tristes, inconformadas. A mãe que tem o filho envolvido com crime, são todas as mães em desespero. Um marido alcoólatra que espanca a mulher, dá na cara de uma comunidade inteira. Um covarde que assassina sua esposa, outro que estupra sua filha, outro que abandona o lar carente para formar outra família sem a menor responsabilidade com quem ficou... produz um efeito social e estrutural, que produz elaboração comunitária, social. Não é da dor destas mulheres vítimas que está se falando apenas e compartilhando. É da sua própria dor em ser a próxima. Em ser potencial vítima. Como resolver internamente? Entretanto, não só de desgraças, mazelas humanas e elaboração da dor vivem as "resoluções de portão". Há partilha de boas-novas, de quem vai se casar, de quem vai ter um filho, de quem arrumou trabalho, de quem entrou num curso ou formou, de receitas de comidas que deram certo, de segredo de vó para tirar a mancha, do chá que faz bem, da erva que cura, do remédio que foi uma beleza, de costura, de bolo quentinho, da distração. Na conversa há troca de saberes, reflexões em grupo, ombro amigo, comunicação vital, tradições orais. Não fosse um comportamento importante, não estaria aí, selecionado há séculos, rs. "Mas, Dai, e aquelas velhas que espalham boatos, expõe as pessoas por prazer?" Existem. Mas tirando aquelas que fazem isso profissionalmente pra mídia, pq vc quer saber quem é o atual da Bruna Marquezine, ou pq o Winderson se separou da Sonza, na vida real ngm suporta muito este tipo de companhia pra conversar. Primeiro pq mentira costuma ser logo descoberta, mas o estigma de mentirosa fica na pessoa pra sempre, isso qdo ela não é cobrada. E segundo pq limita as possibilidades de amizades, já que ngm quer ser confidente de alguém que sabidamente vai te expôr logo adiante. Este comportamento da maledicência pura, é via-de-regra punido de alguma forma socialmente. E então pq a imagem padrão da "fofoqueira", estendida a quase todas as mulheres periféricas, é tão forte? Eu tenho uma hipótese: patriarcado. A quem interessa a união de mulheres, a não-rivalidade feminina, troca de saberes, reflexões em grupos, lealdade e cumplicidade entre elas? A quem interessa que mulheres possam ir além do âmbito doméstico, ter lugar pra correr em caso de violência, ter amiga(s) que ajuda(m) a denunciar? A quem interessa que a energia das mulheres se desloquem para outras mulheres, ao invés da casa e da prole do patriarca? A quem interessa que o discurso "minha ex é louca" ou "minha mãe é megera" ou "foi ela que deu em cima de mim" ou "não sou pedófilo, essa menina tá mentindo" ou "ela que quis" seja duvidado ou questionado, e não completamente aceito como é hoje pela produção histórica da rivalidade entre mulheres? A quem interessa que todos os abusos que ocorrem dentro dos lares, das relações, não sejam maquiados, mas ditos, elaborados e compartilhado entre as mulheres de uma comunidade? A quem interessa a comunicação plena entre as mulheres? R: não aos homens. E se eles não podem combater a perigosa união e comunicação sororária entre as mulheres, aos menos tem sido eficientes em demonizá-las. Fofoqueiras!



Foto de capa: Mulheres Nambikwara Namaindê lavam roupa na beira do rio. Foto de Kristian Bengtson, 2003.




Daiane Novaes. SP.

02.05.2020




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