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  • Foto do escritorPaçoca Psicodélica

Por que dar minha vida? - Taiane Solin

Atualizado: 17 de mai. de 2020

Há alguns dias recebi um paciente com falta de ar. Me paramento, examino. Muito chiado, esforço respiratório, sem falta de ar à saturação de oxigênio e reclamando de falta de apetite porque não sente o cheiro da comida há 3 dias. 57 anos, pedreiro, sem nenhum problema de saúde. Após uso de broncodilatadores, apresentou alguma melhora. Tinha tomografia em vidro fosco: Típico de Covid 19. Coletamos teste rápido e pcr. Quando foi receber alta, na checagem de sinais vitais, pela primeira vez estava com a oxigenaçao e pressão baixa. Suspendo a alta. No dia seguinte, o médico que estava de plantão volta a usar broncodilatadores. No outro, eu volto ao plantão e os broncodilatadores param de fazer efeito. Ele está há 5 dias sem ver a família que vem todo dia receber notícia. Aviso que ele está grave e sugiro uma chamada de vídeo entre a família e o doente. Passo meu número pessoal. Levo uma bronca monstra da coordenação de enfermagem. Nem perdi tempo batendo boca. Ele conversa com eles em tom de despedida sem que eu falasse nada. A família chama sua atenção para que não falasse ddaquela forma e dessa vez quem não perde tempo batendo boca é ele. Desligamos. Ele piora MUITO rápido. Em menos de 2 horas intubei e coloquei em ventilação mecânica e em uso de drogas vasoativas para subir a pressão arterial. Sai o teste rápido: positivo para Covid 19. 1 dia... 2 dias... 3 dias... Num plantão que atendi 2 pessoas em 24h, que tinha tudo para ser tranquilo, fiquei das 18 em diante acordada, em cima do leito. Ajeita parâmetro de ventilador, ajusta droga, entra ou não entra com corticoide? Colhe isso, aquilo. Faz gaso. Suspende dieta. Parâmetro de novo. Chega a família e eu "boto o gato no telhado". Deixo eles se despedirem pelo vidro da porta da sala de emergência. As 4:30 da manhã eu desisti. Nós desistimos porque não tínhamos mais o que fazer. Às 4:50 ele faleceu. O primeiro óbito da unidade. Toda a equipe em volta... ficamos falando com ele até ele partir. Deve ser horrível morrer sozinho e de falta de ar. Às 5 da manhã eu vou tomar um café, uma água, respirar. Primeira vez que me desparamento: usar capote, faceshield, n95+máscara cirúrgica, 2 luvas, capote e bota por tanto tempo é muito cansativo, quente e estressante, alem da situação em si.

Ligo a tv e tem um bando de babaca pedindo o fim do isolamento. É como se tudo isso fosse em vão. Pra quem estamos aqui, mesmo?


Foto de capa: Tirada no hospital Cremona, na Itália, no norte da península, foco do surto, e a enfermeira é Elena Pagliarini, 43 anos, que cede ao cansaço depois de um dos turnos mais exaustivos de sua vida. (março, 2020)



Taiane Solin. Médica. SP.

20.04.2020.

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