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O dia em que seremos todos virginianos - Paçoca Psicodélica

Atualizado: 16 de abr. de 2020

Coisas in natura eu sempre dei banho (inclusive ovos), mas pacotes e caixas não.

Eu chegava eu casa, tirava os sapatos, tirava a roupa da rua e colocava no cesto, lavava as mãos. Virava os conteúdos em potes de mantimentos, jogava as embalagens fora. Guardava as sacolas pra reaproveitar e pronto. Às vezes, com preguiça, eu guardava as coisas de geladeira e deixava a compra na sacola e as sacolas no chão da cozinha por um tempinho. Sei lá, ia tomar banho, comer algo ou conversar no celular.


Agora, o dia de fazer compras e o depois, a hora de guarda-las, te faz parecer um virginiano que levou horóscopo à serio demais e requer um preciso e extenso ritual digno de filme de ficção científica, com cenas de uma dona de casa sobrevivendo à guerra biológica. Minha última vez foi dia 31 de março e além de ter saído mascarada, atraindo olhares "Ai meu deus uma black block!", demorei 4 horas e pouco pra terminar todo o processo caseiro de descontaminação que descrevo a seguir:


Chego em casa

Entro com as sacolas nas mãos, juntas à frente de meu corpo para que não toquem em nada além de minhas mãos e roupa. Caminho pisando centralizadamente no estreito e curto corredor (que me levará da porta de entrada ao banheiro) do qual previamente já retirei todos os possíveis panos e obstáculos do chão. Ao sair, de casa esquecera de acender uma luz e já anoitece, fico mais tensa. Tenho que levar as bolsas pro banheiro pois o apartamento não possui área de serviço muito menos varanda; sem tanque de lavar roupas e com a cozinha e pia pequenas me sinto mais segura fazendo do box e do chão do banheiro a "zona contaminada", lá será mais fácil jogar sabão em tudo depois.


No banheiro

Coloco as frutas e legumes aos poucos em 2 baldes com sabão, depois esfrego com escova ou bucha uma a uma. Enxáguo várias vezes trocando a água dos dois baldes e as coloco para secar numa grande bacia verde que está em cima do vaso (tudo desinfetado antes de sair). Mas tem coisas que não podem ser jogadas no balde (!!), tipo saco de pão de forma e eu não tenho álcool em gel, então é uma mega operação para colocar o pão de forma num pote sem que a parte externa do saco toque em nada. Virar a boca dele pra fora e ir desenrolando aos poucos enquanto manobro para que as fatias caiam dentro do pote, uma a uma sem pressa. Que desgaste.


E lava lata de cerveja, e mergulha saco de farinha de tapioca e de farinha de milho rapidinho dentro d'água, enche de sabão e tira. E enxágua, e troca de novo a água dos baldes. E tira o queijo da embalagem no mesmo esquema do pão de forma e lava as mãos 500 vezes e mergulha os sacos do mercado dentro da água com sabão também... Isso depois de já ter tomado um banho minucioso, lavado a cabeça, lavado minhas roupas na mão (máquina quebrada faz 2 meses), lavado pochete, moedas, notas, cartão, chaves, carteira, chinelos. De repente começa o comunicado quase que diário da prefeitura de Niterói. Novamente pedem que fiquemos em casa, que tenhamos cuidados redobrados com a higiene e são ditas as últimas notícias da epidemia na cidade. A voz abafada e metalizada no alto falante da Defesa Civil, o silêncio na rua, a tarefa que executo, o cheiro de produtos de limpeza, os números, as estatísticas... juntos, me convencem de que por tempo indeterminado minha casa é agora minha alcova.


Estou de calcinha e sutiã, acocorada na porta do box do banheiro, cômodo 2m x 1m, com o chão alagado, lombar pedindo socorro e as pernas também doem por causa das micro varizes. Umas 2h depois de começado o processo, coloco na caixinha de som uma música de 432Hz e tento manter minha mente no presente, no que estou fazendo. Se eu começar a recordar ou pensar onde queria estar ou como chegamos a esse ponto ou que ainda é só o começo... será muito pior. Respiro, faço piada ao descobrir que nunca lavei as frutas direito, agradeço por ter comida, me admiro com as cores vivas dos vegetais limpos, esqueço o cenário da porta para fora e faço fotos pensando naquelas imagens bonitas de alimentos que os profissionais fazem. Eu já disse que estava com muita dor?


Hora de guardar as comprar

Depois e aos poucos levo tudo para cozinha, coloco as frutas e os legumes em pratos, travessas e potes na geladeira que fica muito colorida. Jogo as embalagens fora, amarro a boca do saco e coloco do lado de fora de casa. Limpo com água sanitária o chão de todos o lugares onde estive e as paredes onde por ventura meu corpo ou as bolsas encostaram por 1 micro segundo. Esfrego o banheiro todo de novo como fiz de manhã: paredes, portas do box, box, vaso por fora. Penduro as roupas e raspo o banheiro. Me alongo na bola e volto pra ajeitar as últimas coisas na cozinha. Estou faminta, belisco tomatinhos e já são quase 23h! Eu cheguei em casa pouco depois de 19h!


Isolamento social

Não me lembro do que jantei naquele dia, uma terça feira, mas acho que foi cerveja e pizza enquanto desabafei com amigos num grupo de Whatsapp. Tenho saído de casa a cada 15 dias para comprar comida e cerveja mas é tanto cuidado que tem que ter ao pôr os pés pra fora de casa (tem que ter muita consciência corporal pra perceber suas mãos o tempo todo; como e por onde seu corpo se movimenta; calcular a distância das outras pessoas... Sem contar aqueles malditos ventiladores gigantes jogando meus fios de cabelo nos olhos me deixando em desespero e sem saber que lado da mão usar no cabelo se depois vou usar as costas das mãos no rosto e as mãos podem estar contaminadas para eu passa-las na cabeça!) e tão exaustiva toda essa higienização minha, da casa e das compras que só não choro nessa hora (choro em outras) ou digo palavrões (outras horas, digo) porque é comida!


Ainda é só o começo. Estou com medo mas me adaptando. Minha regra é: sem me contaminar e sem contaminar ninguém até o dia em que ir ao sacolão não nos faça mais ser tão sistemáticos e minuciosos ou parecer parte de filme um apocalíptico. Nem gosto de filme assim.




Yasmin Silva, Paçoca Psicodélica.

Graduada em Letras, pós graduada em Arteterapia.

Agente de Leitura, Arteterapeuta, Podcaster, Terapeuta da Ginecologia Natural.

05 04 20 _ 22° dia da 40ntena.





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O PROJETO


Mulheres em 40ntena, novo projeto do Pedaleiras, de escrita criativa e terapêutica, de expurgo e cura para unir e divulgar os textos emocionados e emocionantes desta fase que nos tomou de assalto. Todas estão convidadas a participar.


Não precisa ser escritora profissional ou artista. Não importa sua escolaridade. Não há mínimo ou limite de idade. A ideia é justamente que seja o mais abrangente possível: com mulheres muito diferentes em questões de classe, cor, faixa etária, profissão, de credo, de região do Brasil, orientação sexual entre tantos outros aspectos mas com algo em comum: sobrevivendo à uma epidemia dentro de um quadro grave de pandemia.


O que tem sido ser MULHER nesta fase que transborda isolamento, solidão, lágrimas, perdas, ansiedade, momentos depressivos, dúvidas, medo e desespero mas também buscas profundas, mergulhos, descobertas, sorrisos, tesão, criações, retomadas, reconciliações, perdão, despertares, novos olhares, inspirações, fortalecimento, solidariedade e amor? Escreva!


Envie seu texto para portalpedaleiras@gmail.com ou para o zapzap 21993272560 com seu @ no FB, título do texto, sua profissão, idade, cidade e estado. Diga também se deseja que seu texto seja revisado gramaticalmente (tirar "erros" de Português) ou não. Pode ser poema, análise de conjuntura, carta, diário, resenha de álbum ou música, crônica, conto, lista de compras, HQ, relato de uma experiência ou qualquer outro gênero textual.


Beijos, desejo que fiquemos bem. Paçoca Psicodélica.


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