I Mais um dia se inicia nessa redoma de proteção que se chama casa. Mais um dia de reclusão do mundo que se parece ameaçador da forma mais complicada possível. O ar livre e o ver o mundo se tornaram risco eminente de morte em um país onde as mortes e o sofrimento parecem insignificantes ao presidente e aos grandes empresários.
Onde as vidas são jogadas à própria sorte todos os dias no cuidado do outro e nos serviços que para a classe média que herdou um complexo de senhoria e de exploração, ultrapassa qualquer senso de solidariedade com os trabalhadores e comprime toda a massa proletária em um pão amargo com gosto de morte que se expõe em forma de delivery, faxineiros, funcionários de supermercado, cuidadores e profissionais de saúde. Me sinto triste por todas as perdas. Cada novo amigo que anuncia a morte de algum parente, cada colega que chora por medo de se infectar em campo, cada pessoa que em seu sofrimento não pode contar com os abraços e a presença dos seus na rotina das horas de insônia, cada morador de rua ou de comunidade que brada sua fome e falta de acesso a insumos básicos. Sair de casa se tornou um mal estar paranoico onde tudo é passível de contaminação. A fruta que aperto e não escolho pode ser a morte da vizinha idosa que mora ao fim do corredor a três prédios de distância do meu... é uma responsabilidade enorme ser contaminado e contaminar sem saber quando, onde, nem por quem. É uma preocupação enorme saber que só os casos graves testam e quem todos os outros assintomáticos ou com sintomas leves podem agravar e não vão poder contar com ninguém. Meus sonhos cada dia mais banhados com sangue e corpos em frigoríficos, cada dia mais sem ar, quase caindo de um precipício de sentimentos de desesperança. E ainda me pergunto, pra onde vai a dor do luto quando nem no cuidar posso tocar as mãos dos meus? Como eu me despeço quando uma doença sorrateiramente nos rouba a chance da despedida? Como eu reverencio a vida estando trancada e com medo enquanto os governos levam as expectativas de cuidado com interjeição de “E daí?” e retirada de direitos? Eu sempre tenho mais perguntas do que respostas. Mas acho que o melhor que posso oferecer nesse momento ainda é a reflexão e a busca dos renascimentos. Renascimento das raízes que fortalecem a solidariedade e as construções coletivas. Renascimento da valorização da ciência e de um SUS que luta por vidas. Renascimento da consciência proletária e da importância de levantar-se por justiça. Renascimento de toda a esperança em construir um novo amanhã onde se pode abraçar sem ter medo de vírus. No qual poderemos finalmente sorrir com a mente sã. No momento tenho lágrimas e medo, mas logo seremos punhos em honra a quem não veio.
II
Sinto uma grande angústia em meu peito:
Será que fiz algo de errado? Será que o que eu posso oferecer não é suficiente no contexto da necessidade do outro? Minha insegurança domina minha emoção. É um sentimento que não consigo controlar e que de adjetivo em adjetivo vai me atingindo como apertos firmes, que comprimem meu coração. É como se o olhar do outro me dissesse:
“Isso, está no caminho certo!” Ou: “Não, acho que você não levou em consideração os pontos a b ou c.”. O outro vira uma bússola que preciso sempre consultar, como se eu não soubesse bem o caminho que devo trilhar. Eu tenho que ouvir “Parabéns”, “Não fez mais que obrigação”, “Porque não tirou 10?” todos os dias para saber que posso continuar sendo amada. Mesmo com todos os meus pecados, mesmo com todas as dores que escondo, mesmo sabendo que em cada momento eu dei o melhor de mim. E isso me dói. Dói ter essa dúvida sobre mim mesma. Dói não poder ignorar o que o outro vai pensar. Porque por mais que a insegurança me corroa, eu sei aonde quero chegar, eu sei que me esforço para que boas sementes sempre possam semear. Me doo sempre em serviço querendo construir. E nenhum conceito poderá me definir. Porque o ser das pessoas não é passível de excluir. Ser bom ou mal é uma dicotomia que é espontânea e que vivemos no momento.
Eu escolho minhas ações de acordo com esse mesmo julgamento. Eu gostaria que fizessem comigo? Eu sinto a dor dessa pessoa? Eu tenho como ajudar de alguma forma? Então porque será que essa insegurança ainda me apavora? Sinto meus laços firmes o suficiente para achar que posso Desobedecer? Discordar e até mesmo Desfazer? Porque ser desviante é uma característica que eu não posso ter? Porque o torto me dói? Porque o imperfeito me domina? Porque o que eu quero ser não pode ser o mesmo que eu devo ser? Quem disse? Quem inventou as regras? Em que pedaço que eu não me abro? Porque eu fujo do meu próprio julgamento?
Nenhuma criança deveria ter que questionar o amor de sua mãe.
Maria Mitsuko. Enfermeira e Escritora. RJ. 30.04.2020.
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