Dois dedos de prosa sobre medicina de catástofre (ou porque a gente precisa tratar o Covid-19 como se fosse uma queda de avião).
Quando um médico está dando plantão em um pronto socorro temos 4 cores que definem a ordem da fila de atendimento: Vermelho, amarelo, verde e azul.
Funciona mais ou menos assim: os vermelhos, mais raros (ainda bem) são os que estão em perigo de morte iminente, com suspeita de infarto, por exemplo, e que devem ir direto para a sala de emergência. Os amarelos são os que têm sinais preocupantes, como uma febre muito alta, precisam ser atendidos rapidamente, mas podem esperar um pouco. Os verdes, em geral a maioria, são os que não vão morrer, mas estão sofrendo no momento, por exemplo, quem tem dor nas costas. Por fim, os azuis são os que nem deviam estar no pronto socorro, como alguém com acne, que está ali simplesmente porque não consegue acessar o sistema de saúde para uma consulta de outro jeito e resolveu baixar no pronto socorro. (Muitos azuis estão atrás de um atestado médico, verdade seja dita).
É a enfermagem, esses primeiros soldados heróicos do campo de batalha, que faz a triagem e divide os pacientes por cor.
O protocolo médico funciona da seguinte maneira: primeiro você atende todas as fichas vermelhas, depois as amarelas, depois a verdes e por último dá o encaminhamento para as azuis. É por isso que muitas vezes você tem que esperar para ser atendido em um pronto socorro. Você pode estar com uma etiqueta verde, com muita dor, mas tem gente infartando “furando fila” na sua frente.
Pois bem.
Quando estamos em uma situação de catástrofe, por exemplo, quando cai um avião, uma outra cor é estabelecida na situação: a preta. Ela corresponde ao paciente muito grave. Aquele que em condições normais teria prioridade e seria uma cor vermelha e furaria a fila de todo mundo, mas que como estamos em uma situação de tragédia, a gente tem que abrir mão dele para tentar “salvar” o maior número possível de pessoas. Quem recebe uma tarja preta em uma situação de tragédia, torna-se um morto-vivo, e vai a óbito sem ter tido nem a chance de que algo pudesse ser feito nem para tentar salvar a sua vida.
Isso é o terror dos médicos. Somos treinados para perder pacientes tentando, mas não para abandonar pacientes a sua própria sorte, sem nem tentar.
Infelizmente esse dilema já faz parte do dia a dia dos médicos emergencistas de vários países menos desenvolvidos, Brasil inclusive. Mesmo em situações “normais”, sem coronavírus, o médico brasileiro muitas vezes já precisa escolher entre dar um leito de UTI para um paciente com câncer ou para um paciente com sepse.
Pandemias, como as do Covid-19 estão obrigando médicos e enfermeiros do mundo todo a agirem como se tivesse caído um avião no local. Quando isso acontece, a contagem de corpos sem chance de tratamento cresce. É o que está acontecendo na Itália, na Espanha (onde estão caindo 3-4 Boeings 777 por dia) e está quase para acontecer em Nova York. Infelizmente a chance disso acontecer no Brasil é altíssima.
(A nossa força talvez venha até da prática em improvisar em situações catastróficas)
Mas, a única coisa eu pode minimizar essa escolha trágica é todo mundo ficar em casa e virar obcecado por limpeza.
Por enquanto (tomara que mude e desenvolvemos tratamento ou vacina rápido) esse é o único jeito da gente dar pelo menos uma chance de vida para todo mundo que acessar o sistema de saúde nas próximas semanas, ou meses.
Não importa se a pessoa está chegando em um hospital por suspeita de infecção por coronavírus ou por qualquer outra coisa, de acidente de trânsito a infarto. Não vai ter leito de UTI para todo mundo, e ninguém está imune a precisar do sistema de saúde (público ou privado).
Colapso da saúde é igual queda de avião: tem casal de vôzinhos aposentados, padres, namoradinhos, gestantes, bebês de colo chorões, homens de negócios, aeromoças bonitas e quem sabe até chefes de Estado.
Faça sua parte. Fique em casa, mantenha distanciamento social e lave as mãos como se não houvesse amanhã.
Renata Kotscho Velloso. 21 03 2020
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