Cartaz oficial do evento
Gostaria de começar comentando sobre a organizadora desse rolê. Sei que ela conta com suas parcerias para a realização dos eventos, mas sua bravura é algo que convém mencionar. Isto porque atua em uma das principais deficiências do Underground, que é sobre gênero e sexualidade, coisa que os caras pecam com absurda frequência na cena RJ-SP – o qual eu já venho estudando há bastante tempo.
O Mulheres Livres Ato VI, apesar de ter acontecido à véspera do Dia Internacional da
Mulher, não é um evento comum de atenção à feminidade. Não estivemos nos deparando com
mais uma “edição especial” pelo Dia da Mulher organizado por um homem – como é de praxi.
Estamos defronte um rolê que enfatiza o protagonismo feminino em múltiplas instâncias.
Primeiro, e evidente, a música, que é cola vital e pulsante, onde as bandas com integrantes que são ativistas da causa pelas mulheres são chamadas. E se abre à pluralidade artística, onde a militância feminista reclama a artesania, a rima e o ritmo, à arte na pele, a inventividade e a argumentação, além da própria capacidade organizativa. Estivemos atentos à importância de consumir de mulheres, onde priorizar o trabalho das mulheres confabula com o ideal de autonomia.
Aconteceu na Associação Cultural Cecília. Na porta do evento, ainda na rua, público e
artistas se reuniam e confraternizavam entre papos e cerveja. Me perdi e fui parar em uma
Companhia de Teatro que levava o mesmo nome e que, apesar de não ser tão distante,
precisei de um táxi para descobrir o lugar.
Anunciados do início do evento e devidamente paga a taxa colaborativa de dez reais, entramos no lugar. De imediato, ainda na parte baixa, alguns expositores vendiam camisetas e CDs; subindo as escadas, dá-se num corredor que separa a área de apresentações da área do bar. Nessa segunda, além da venda das bebidas, destaco a concentração da venda de merchandising das bandas e outros itens de estilo – bótons, patches, adesivos, etc. -, também de uma banca de produtos naturais gestionada por uma mulher mãe (Cabocla Futurista) e uma para as flash tattoo executado por uma mulher tatuadora.
Do outro lado, um estúdio amplo e bonito reserva espaço para o som experimental de Ana, da Umbilichaos. Ácida e expressiva, a one woman band foi especialmente recomendada por uma boa amiga, a F. Bauer, desde o Rio de Janeiro. A forma com que exprimiu o som noise fez-me sentir o pairar de uma aura de dor e angústia. Pessoalmente, me encanta esse tipo de som que parece expurgar da artista um sentimento profundo. Ana conseguiu isso em mim nessa apresentação.
Na sequência, a Punho de Mahin veio me surpreender mais do que positivamente ao abordar temas sobre a negritude sob recorte histórico passado e contemporâneo, evocando nomes e contextos para corporizar a luta. A forma com que são abordados os temas e, especialmente, quem está ali no palco abortando esses temas são muita concretude ao que está sendo falado. Adorei essa justaposição do lugar de fala: a mulher negra falando sobre a vida e a história da mulher negra, o homem negro construindo a musicalidade que afeta e tematiza sua vida e seu passado. Acho muito enfático e necessário que a performance e predisposição dos artistas essencializem-se. A cena underground precisa mais disso para ser verdadeiramente underground; e é revigorante para mim, enquanto público, beneficiar-me desse tipo de apresentação. Me inspirou muito, muito mesmo.
A Violence Increases Fear eu já conhecia. Acompanho, desde as redes sociais, os inúmeros projetos da Karine, que protagoniza o rolê extremo em São Paulo do jeitinho que eu tenho vontade de ver no Rio de Janeiro. Não poderia melhor referenciá-las senão como as próprias dizem no seu recém-saído álbum: “Banda Queer-Dark-Punk, influenciada por D-beat, Post Punk, Crust, NeoCrust, com temáticas anarquistas, libertárias e da escuridão das relações humanas em sociedades doentes”.
Diferente da maioria dos rolês que eu frequento, o vocal é audível, facilmente compreensível. O som, que manifesta o punk através de um obscurantismo do black metal e do doom, pesa e arrasta nossa emoção para expressar os temas que aborda. Uma canção que me evoca à memória agora diz: “Se o suicídio te parece violento, imagina a intensidade do desespero de quem morre por dentro”. A música, chamada Louise, nos tocou Mulheres Livres Ato VI. Estivemos a par da triste e indignante história de uma mulher trans a qual esta canção homenageia. Definitivamente, o sofrimento que transmite expressa uma urgência.
No show da Imminet Doom, a galera já está agitadíssima, mais que antes; e aqui também rola uns pogo bem louco das minas. Acontece também o primeiro “chega pra lá” das minas em relação aos caras. Ao que parece, os homens ainda não perceberam que o mínimo que eles podem fazer por uma mina de rolê é dar espaço para elas estarem na roda em segurança. Não se trata de favoritismo, muito menos de uma característica protetiva e patriarcal, mas sim do bom senso de que não podem simplesmente incorporar os brutamontes quando o espaço é comum para homens e mulheres de diversos tamanhos brincarem a roda.
Assumindo os vocais, para além do próprio evento, Gê é a mulher do front nesta banda de black metal antifascista. Apesar da cada vez mais frequente adoção do termo “antifascista” nos rolês e bandas, a necessidade do uso revela uma preocupação contemporânea à cena. O uso da tag “antifascista” reforça a ideia de que estar ativo ou ser ativista underground depende da postura que carrega para além do som que ouve/executa. Compreendo tratar-se de um levante na contramão do conservadorismo que se resguardada entre headbangers e outros caras que se orgulham de ser oldschools – lembro aqui daquele rolê “Deixa o rock morrer”, organizado pela galera do Rio em fevereiro desse ano (link da matéria). Entrevistamos (Paçoca e eu) a galera do Rap Plus Size pouco antes de subirem no palco. Discorremos alguns aspectos da sexualidade, dos preconceitos de gênero, classe e estética e a complexidade da denúncia em casos de violência contra a mulher. Estes são alguns dos temas que abordam na sua música. Essa prévia troca de ideias deu-se em uma atmosfera maravilhosa, proporcionada por um círculo formado predominantemente por mulheres, numa área linda, lotada de pequenas luzes e arborizada, localizada ao fundo superior da propriedade. Dali, o grupo vai diretamente para o palco. É fabuloso prestigiar esse tipo de som, o rap e hip hop, em um mesmo rolê que toca metal punk. O mote do evento Mulheres Livres alinhava diferentes tipos de sons para construir aquilo que há de mais maravilhoso no meu mundo: o underground. Observo a confraternização de subalternos, onde é possível que as vozes, quase sempre abafadas, se apoiem para ecoar. Uma das coisas supercomparáveis diz respeito à vibe da agitação da galera: tanto no rap como no metal, a manifestação máxima do público se alinha a um tipo de mosh. Fim da noite, é hora de assistirmos a tão aguardada banda do centrão do país, Terror Revolucionário. Tocam um hardcore punk com vocal gritado maravilhoso. A baixista Drikaos é outra referência: iria assisti-la já recomendada por pessoas da cena extrema do Rio. O grupo foi bem recebido ainda do lado de fora do evento. O lugar ficou lotado. Ânimos exaltados, muita gente na expectativa, a roda começa suave, com a participação das minas que já estavam lá no meio curtindo desde cedo... Mas, em dado momento, a concentração masculina ficou densa a ponto de sermos, lentamente, excluídas do mosh. Isso acontece por meio do impacto desmedido dos corpos, e da força que o cara aplica para permanecer na área do mosh. Eles acabam por “brincar” apenas com seus pares; somos, lentamente, excluídas do foco da agitação. Foi necessário que Mary (Bloody Mary Une Queer Band), que estava operando o equipamento de som berrasse no meio da roda: “Aê, o nome do evento não mudou não! Tá machucando as minas na roda! Vão lá pra trás!”. Assim como a Gê Almeida e a Camila Sousa já haviam dito no microfone coisas como "hoje a noite é das mulheres" ou “os caras que quiserem ver Terror Revolucionário, vão amanhã pra Jundiaí” , “hoje é o dia das mulheres curtirem Terror Revolucionário” - com ênfase na palavra “mulheres”. Isto é muito emblemático. Ora, em que rolê nós temos tanta moral para exigir que nosso pleno divertimento seja respeitado? Tão comum que aceitemos ser expulsas da roda, ou que nem tenhamos coragem de entrar na roda, por conta dos assaltos violentos dos caras que creem estar em um ringue ou algo do gênero. Deixamos de curtir intensamente nossas bandas favoritas só porque o cara não consegue controlar seus excessos... E nem o direito de reclamar de algum porradão excedido temos na maioria das rodas, porque, na cabeça dos caras, igualdade de gênero é a mulher aceitar tomar a mesma porrada que um homem levaria. Estúpidos! A insatisfação estampou-se na cara de alguns homens presentes. Foi consensual, entre as minas, que a vontade que eles estavam passando era a mesma que nós sentíamos em qualquer rolê regular. No fim, predominou, em mim, a impressão de ter vivido a roda mais cheirosa da minha vida.
Texto: Vic Morphine
As fotos feitas na noite do evento estão presas na máquina: Paçoca não tem cabo e nem leitor de cartão e por conta da 40ntena não tem como passá-las pessoalmente pra Vic. Aguardem porque ficaram demais!
Foto de capa: banda Punho de Mahin. Imagem retirada da página da banda. Autor: @sigarciasi
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