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  • Foto do escritorPaçoca Psicodélica

Oração de Uma Trabalhadora - Denise Freitas

ou Marxismo na visão de quem realmente precisa trabalhar para sobreviver. O dono da empresa que trabalho é um velhinho de 80 anos. Eu nunca tinha visto uma pessoa com Alzheimer avançado de perto até conhecer o Seu Fernando. Ele não reconhece a maioria das pessoas e já esqueceu de quase tudo, mas continua apegado a lembrança da fundação da fábrica, que é o prédio onde fica o escritório, então, esporadicamente nos encontramos. Toda vez que o Seu Fernando aparece por lá, sou tomada por vários questionamentos, a começar pelas roupas simples que ele usa, e o rosto bem marcado por décadas de trabalho sem descanso. Não sei o que o levou a deixar Portugal aos 18 anos de idade e migrar para o Paraná, mas assim como seu pai e avô, herdou a profissão de "caixeiro viajante" e mais uma vez, aquela velha história do imigrante pobre, que começou a vender quinquilharias em uma carroça e conseguiu erguer um império, se repete. Nós somos automaticamente condicionados a admirar pessoas assim, e enxergar nelas algum tipo de esperança de ascensão social para a nossa vida no futuro, basta trabalharmos até a exaustão mesmo que isso signifique perder o domínio das faculdades mentais e não ser mais capaz nem de fazer xixi sem ajuda de um enfermeiro. As marcas do trabalho duro não estão nos rostos dos filhos do Seu Fernando, que agora administram o negócio, e acho que nem é necessário falarmos sobre os netos. Ambos se emocionam muito ao falar do pai e avô, e contar histórias dessa lenda viva, que passou a povoar o imaginário dos trabalhadores da fábrica, e a grade maioria, mesmo sem conhecê -lo fora do mito, o admiram e tem nele a imagem de um homem bondoso que praticamente deu a vida para que hoje algumas centenas de famílias tenham de onde tirar o pão de cada dia. Como é que se cria consciência de classe quando os trabalhadores enxergam o patrão como um herói? Quantas histórias de "empresários heróis" nós conhecemos? Apesar de saber exatamente como funciona a "mais-valia" e o que Marx escreveu sobre alienação e fetiche, eu, Denise, olho para o Seu Fernando e sinto pena, ignorando os milhões que sei que ele tem na conta, ignorando as condições insalubres de trabalho de alguns setores da fábrica, ignorando os carros importados nas garagens da firma, eu, Denise, me sinto incapaz de colocar a Teoria Marxista em prática, e aqueles que militam apontando a cegueira do proletariado e falando de revolução, são uma minoria de filhinhos de papai que nunca precisaram pegar um ônibus lotado por necessidade, nunca bateram ponto por necessidade, mas se acham no direito de falar o que o trabalhador tem que fazer. Enxergam a vida como um grande experimento social, tem respostas para tudo, mas nunca se viram preocupados com um boleto nas mãos. Vocês não sabem de nada. Entendem de livros, embasam suas opiniões assistindo vídeos de outros filhinhos de papai YouTube, viajam para o exterior duas, três vezes no ano, tem pais professores universitários, empresários, funcionários públicos de alta patente e querem mesmo dizer o que o trabalhador precisa fazer como se nos fizessem "caridade intelectual". Estou exausta. Exausta de quem acha que está fazendo caridade querendo pensar por quem está preocupado demais tentando sobreviver. Vem dividir conosco os seus privilégios materiais, faça como Marx propôs e deixe o idealismo de lado. O problema é que ninguém, absolutamente ninguém está disposto a abdicar de privilégios e é por isso que nunca o socialismo irá existir, e se for pra vir no meu texto teorizar se você tiver menos de 15 anos de carteira assinada, nem venha. Você não tem esse direito.

Foto de capa: trabalhadoras sofrendo assédio moral sendo obrigadas a se ajoelhar na porta de um aloja e orar pedindo a reabertura do comércio em Campina Grande, Paraíba. A cidade atravessa um momento de aumento acelerado de contaminados pelo Corona Vírus.


Denise Freitas. Maringá, Paraná.

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